Como é sabido, as pessoas coletivas consistem numa ficção jurídica, criadas com o intuito de dinamização da atividade económica, através da separação e limitação da responsabilidade emergente do comércio em geral, dando lugar a dois patrimónios distintos: o/s património/s do/s sócio/s e o património da pessoa coletiva.
Para o efeito, à pessoa coletiva é concedida personalidade jurídica que irá fazer surgir um novo centro de relações jurídicas, autónomo em relação aos seus membros e às pessoas que atuam como seus órgãos.
Por assim ser, tal concessão de personalidade jurídica e a consequente autonomia patrimonial não pode ser examinada num espetro absolutista, isto porque quando estejam em causa práticas ilícitas censuráveis em detrimento de terceiros, a personalidade coletiva pode ser levantada (“levantar do véu”).
“Quando a personalidade coletiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade coletiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica coletiva” (Menezes Cordeiro).
No nosso ordenamento jurídico positivo não existe um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica, pelo que tal trabalho foi assegurado pela jurisprudência e pela doutrina, baseando-se estas em princípios gerais positivamente consagrados como os da boa-fé e do abuso de direito.
Como escreveu Fredie Didier Jr: “É forçoso admitir que, nesses casos, assim como o direito reconhece a autonomia da pessoa jurídica e a consequente limitação da responsabilidade que invoca, a própria ordem jurídica deve encarregar-se de cercear os possíveis abusos, restringindo, de um lado, a autonomia e, do outro, a limitação. É nesse cenário, portanto, que desponta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visando corrigir essa eventual falha do direito positivo.”.
Ou como Rubens Requião defende:” se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado à realização de um fim, nada mais procedente do que se reconhecer no Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude através do seu uso.”.
Em suma e como afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça:” o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de proteção de práticas ilícitas ou abusivas, contrárias à ordem jurídica, censuráveis e com prejuízo de terceiros.”